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RIOS AMAZÔNICOS

Erosão e assoreamento deixam ribeirinhos em risco

CENÁRIO - Estudos realizados no Amazonas e no Pará atestam impactos dos fenômenos, que são naturais da região, mas podem estar sendo agravados pelas mudanças climáticas

Ádria Azevedo | Especial para O Liberal

30/03/2025

“O que a terra caída causou aqui na comunidade é que precisamos nos mudar. A comunidade era bem na frente do rio e, agora, tivemos que vir para trás, mais longe. Tivemos que mudar o nosso porto e não temos mais acesso ao rio. Temos que ir pelo igarapé para poder sair para o rio Amazonas”. 


O relato do agricultor Moisés Fernandes, líder comunitário da comunidade Coadi, no Amazonas, mostra as dificuldades vividas por ribeirinhos da região por conta dos fenômenos de erosão, também conhecido como terra caída, e de assoreamento dos rios locais.

 


A erosão é o desgaste das terras nas margens dos rios, que podem provocar deslizamentos em que o curso d’água “engole” áreas inteiras. Já o assoreamento é o acúmulo de sedimentos em uma parte do rio, formando bancos de areias ou praias, dificultando a navegação e provocando mudanças no curso normal das águas. 


Ambos são fenômenos que sempre existiram na Amazônia, mas que as ações humanas e as mudanças climáticas parecem intensificar. “Nos últimos tempos, aumentou bastante a queda de terra aqui. A minha casa ficava próxima do rio e foi atingida, está toda rachada com o impacto da terra caída”, testemunha o morador de Coadi.

 

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Comunidade Coadi, no Amazonas, mostra as dificuldades vividas por ribeirinhos da região por conta dos fenômenos de erosão, também conhecido como terra caída (Foto: GP Geociências/Instituto Mamirauá)

CONSEQUÊNCIAS

 

O resultado desses fenômenos é que muitas comunidades ribeirinhas encontram-se em variados graus de risco, seja pelo perigo de deslizamento de seus territórios, seja pelas grandes chances de isolamento por conta da dificuldade de navegar pelos rios nos períodos de seca.


Uma pesquisa realizada pelo Instituto Mamirauá, em parceria com as universidades de Brasília (UnB), do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) e de Toulouse, na França, avaliou 254 comunidades da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, localizada no Amazonas. Do total, 51 foram categorizadas quanto ao nível de risco frente aos dois fenômenos. Destas, quatro estão sob risco muito alto (Santa Domícia, Canariá, Boiador e Acapuri de Baixo),  sete sob risco alto (Barroso, Porto Braga, Punã, Ingá, São Raimundo do Panauã, Triunfo e Caburini), sete estão com risco moderado, onze constam em risco baixo e 22 com risco muito baixo.


Para determinar os níveis, os pesquisadores analisaram imagens de satélite entre os anos de 1986 a 2021, combinando com informações socioeconômicas da região, como a distância no acesso a serviços e experiências prévias com os fenômenos estudados.

 

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Geógrafo André Zumak é um dos autores do estudo na Reserva Mamirauá, que avaliou os riscos de erosão e assoreamento (Foto: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá)

Pesquisa fez escuta ativa nas comunidades

 

A geógrafa Paula Silva, uma das pesquisadoras envolvidas no estudo, fez cerca de 60 entrevistas com moradores das comunidades em risco. Ela relata o que ouviu dos ribeirinhos da comunidade Coadi.


“Nas imagens de satélite, foi possível perceber uma mudança bem radical e abrupta em relação às terras caídas. Não foi um processo lento. As pessoas entrevistadas contaram que era uma comunidade bem estruturada, com ruas, posto de saúde, escola, poço artesiano, praça e um porto. Rachou tudo, foi tudo caindo. E, com os anos, a erosão foi se tornando muito mais intensa, não é um processo que estagnou. Na última visita de campo que fizemos, eles já tinham desativado o poço artesiano. E foram muito mais para dentro da floresta”, conta Paula.


A pesquisadora registra também a experiência de moradores da comunidade Canariá, localidade em processo de reconhecimento como Terra Indígena. “No relato deles, quando a erosão começou, eles só ouviram o estrondo à noite. Tiveram que sair de suas casas, com medo de que fosse cair tudo. Depois desse episódio, não houve um outro mais intenso, mas há grandes rachaduras, que estão se expandindo cada vez mais. Eram da grossura de um fio de cabelo e agora já medem um palmo. Toda a comunidade está comprometida”, alerta a geógrafa.

 

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Geógrafa Paula Silva observa as rachaduras na comunidade Canariá (Foto: Instituto Mamirauá)


Já a comunidade Caburini passa pelo problema inverso: a forte sedimentação na área provoca a migração dos ribeirinhos para mais perto do rio, porque o acúmulo de bancos de areia vai deixando o curso d’água cada vez mais distante. Por esse motivo, a população já migrou quatro vezes, para facilitar o acesso ao rio.


Além dessas mudanças, há quem decida deixar a comunidade, provocando um movimento migratório para outras localidades ou para a zona urbana. “Alguns se deslocaram para a cidade, porque tinham parentes”, pontua Paula.

SECA

 

Com o assoreamento e a consequente dificuldade de navegação, muitas comunidades sofrem com a falta de acesso a mantimentos e serviços nos períodos de seca na região. “Fica uma distância enorme para se deslocar, por causa dessas formações de praia. Fica difícil comprar o que precisa ou mesmo o acesso aos serviços de saúde, se alguém passar mal. Até mesmo o deslocamento para outras comunidades próximas para ir à escola vira uma longa distância”, enfatiza a geógrafa. 

 

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A comunidade Caburini sofre com a forte sedimentação na área, que provoca a migração dos ribeirinhos para mais perto do rio, porque o acúmulo de bancos de areia vai deixando o curso d’água cada vez mais distante. Por esse motivo, a população já migrou quatro vezes, para facilitar o acesso ao rio (Foto: GP Geociências/Instituto Mamirauá)


O cenário se agrava com a intensificação dos períodos de seca na Amazônia, que atingiu níveis recordes em 2023 e 2024, deixando muitas comunidades isoladas.

ESTUDO

 

De acordo com o geógrafo André Zumak, um dos autores da pesquisa na Reserva Mamirauá, a avaliação do risco levou em conta três variáveis principais: o perigo, a vulnerabilidade e a exposição. “O perigo se refere ao dado global, de quais comunidades estão sofrendo erosão e sedimentação. Já a exposição foi definida a partir de dados socioeconômicos levantados pelo Instituto Mamirauá, que é justamente saber quais comunidades têm maior população, certa infraestrutura, centro comunitário, até mesmo ambulância. Nossa metodologia faz a multiplicação do perigo pela vulnerabilidade e pela exposição”, detalha.


Ainda de acordo com Zumak, o estudo não afirma, com 100% de certeza, que a intensificação dos fenômenos tem a ver com as mudanças climáticas, até porque o período pesquisado nas imagens de satélite foi até 2021. “Tentar compreender melhor essa relação é justamente um desdobramento para o próximo estudo que a gente está desenvolvendo. Mas o que a gente percebe é que, nos dois últimos anos, quando houve secas extremas, houve um aumento dos casos notificados desses fenômenos”, comenta.

Estuário amazônico é afetado pelo aquecimento global

 

Já para as áreas de estuário na Amazônia, ou seja, locais onde o rio interage com as águas do oceano Atlântico, o impacto das mudanças climáticas nos fenômenos de erosão e assoreamento é claro. “São fenômenos naturais que podem ser agravados pelas mudanças climáticas. O aquecimento global resulta em aumento da temperatura da superfície dos oceanos, causando a expansão térmica das partículas de água e o maior derretimento de geleiras em regiões polares. Como consequência, tem-se uma elevação do nível do mar, que pode prejudicar inclusive as zonas estuarinas”, esclarece a professora Leilanhe Ranieri, coordenadora do Laboratório de Oceanografia Geológica da Universidade Federal do Pará (UFPA).

 

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Vila do Pesqueiro, em Soure, no Marajó, testemunha as mudanças causadas pela erosão na região (Foto: Arquivo pessoal/Leilanhe Ranieri)


O laboratório estuda a vulnerabilidade costeira à erosão, bem como o transporte de sedimentos em áreas como a Ilha de Mosqueiro e a Ilha do Marajó, ambos no Pará. “Os fenômenos apresentam níveis distintos, dependendo de fatores como intensidade de correntes, energia de ondas, subidas das marés, aporte sedimentar dos rios, além do próprio estado de degradação e ocupação humana nas margens estuarinas”, indica a oceanógrafa.


Segundo ela, quanto maior o nível de ocupação humana, maior o risco de ocorrência dos fenômenos. “Além disso, uma parcela considerável de populações que ocupam estas áreas apresenta vulnerabilidade socioeconômica, ficando, muitas vezes, em condições de desamparo financeiro para enfrentar os problemas ambientais. É importante que os municípios estejam preparados para lidar com os efeitos de ambos os fenômenos”, sugere.

INTENSIDADE

 

José Alberto Almeida, líder comunitário da Vila do Pesqueiro, em Soure, da Ilha do Marajó, testemunha as mudanças percebidas na região. “A erosão na comunidade acontece por vários anos, mas, desde o ano passado, está sendo mais forte. A gente nunca imaginou que uma água de agosto fosse derrubar uma boa parte da comunidade. Derrubou árvores, casas da beira da praia, plantios dos quintais. Já tivemos que remover oito casas para uma outra parte da comunidade, que está bem espantada com os fenômenos que vêm acontecendo. A gente espera uma ajuda por parte do governo, para nos dar uma assistência, fazer uma obra grande pela gente. Se falou em remover o pessoal daqui, mas isso é difícil, as pessoas estão acostumadas. E vai remover para onde?”, questiona.

AUXÍLIO

 

Para Leilanhe Ranieri, é preciso que o poder público forneça subsídios para a proteção costeira, para mitigar os efeitos da erosão e assoreamento. “É preciso implantar estruturas passivas, que permitam uma reconstituição natural do ambiente. É importante também monitorar os indícios da erosão, grau de assoreamento e os riscos agregados a eles em áreas rurais, onde estão localizadas muitas comunidades costeiras, especialmente extrativistas, pois muitos indivíduos dependem fortemente da estabilidade do solo nas suas atividades de subsistência”, aponta.

 

Praia da Baleia, distrito de Jubim, Ilha do Marajó, 2024 - Arquivo pessoal Leilanhe Ranieri (1).jpeg
Erosão na Praia da Baleia, em Salvaterra, na Ilha do Marajó. Para Leilanhe Ranieri, é preciso que o poder público forneça subsídios para a proteção costeira, para mitigar os efeitos da erosão e assoreamento (Foto: Arquivo pessoal/Leilanhe Ranieri)


Já André Zumak pontua que a realidade estudada na Reserva Mamirauá se repete em outras regiões amazônicas. “Essa dinâmica de constante mudança na paisagem, com erosão e sedimentação nos rios, ocorre em toda a Panamazônia. Dentro do Serviço Geológico Brasileiro (SGB), existe um setor responsável por esse mapeamento, assim como as Defesas Civis também fazem esse tipo de trabalho. Mas ainda é muito incipiente”, lamenta o pesquisador.


Para Zumak, é preciso haver mais estudos e, sobretudo, maior comunicação com as comunidades. “A gente pega, por exemplo, relatórios do SGB, das análises que eles fazem por município, e a gente percebe que a maioria desses relatórios são feitos só nas sedes municipais. E as notificações acabam também não chegando aos gestores públicos, às Defesas Civis. Assim, as comunidades ficam à mercê de alguma informação chegando ali, de que estão expostas a um perigo. Com certeza aquela terra caída de Manacapuru [no Amazonas, onde um deslizamento de terra deixou duas vítimas] deu vários sinais de que ia acontecer. E em nenhum momento as pessoas que estavam ali foram alertadas de tal perigo. Então, eu gostaria muito que o nosso estudo fosse expandido, que essa metodologia fosse apropriada pelos gestores públicos e por outros órgãos que tratam desse assunto, para poder, justamente, evitar que vidas sejam perdidas”, conclui o pesquisador.

 

Ersosão em frente à escola da comunidade Canariá - Arquivo pessoal Yodji Jamesson Kanamari 1 (2).jpeg
Erosão em frente à escola indígena na comunidade Canariá, no Amazonas. "Já deslizou um barranco e já tem um rachado na nossa escola. Se deslizar mais um pedaço, a gente vai precisar procurar outro canto. Ninguém sabe o que pode esperar pela frente”, diz Yodji Jamesson Kanamari (Foto: Arquivo pessoal/Yodji Jamesson Kanamari)

IMPACTOS

 

Yodji Jamesson Kanamari, indígena da etnia Kanamari, nascido e criado em Canariá, diz que o que sua comunidade sente é insegurança. “A estrutura geográfica na frente da comunidade tem diminuído cada vez mais e isso tem impactado de forma direta na vivência, no espaço, nos moradores, principalmente na questão do medo. Nos últimos tempos, os fenômenos ficaram mais fortes. De acordo com o levantamento feito, as casas mais próximas do rio estavam, anos atrás, a 50m ou 70m de distância. Hoje, algumas casas não chegam a 20m. Já deslizou um barranco e já tem um rachado na nossa escola. Se deslizar mais um pedaço, a gente vai precisar procurar outro canto. Ninguém sabe o que pode esperar pela frente”.
 

 

PARCERIA INSTITUCIONAL
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